quinta-feira, março 30, 2006

O porteiro de aço e a metáfora pós-industrial

O porteiro de aço e a metáfora pós-industrial

Para mim todo esse episódio a cerca da obra do artista plástico Jackson Ribeiro, o agora famoso “Porteiro”, serviu ao menos para uma coisa: mostrar o nível cultural de figuras da sociedade pessoense, consagrados líderes de opinião em meio à nossa comunidade. Não vou me posicionar a favor ou contra a exposição da peça de Ribeiro (temos outro Jackson famoso!). O que gostaria de entender/discutir melhor é sobre uma questão sublime, que foi ignorada nessa discussão senilizada: qual a função social da arte e da cultura na vida dos nossos concidadãos (pra usar um termo em voga pelos políticos).

A mim não interessa, sobremaneira, se o metálico porteiro vai “vigiar” a entrada do céu ou da casa de lúcifer. Nem quero saber se a “instáuta” será fixada ao lado da matriz Batista (na cabeceira da avenida Beira Rio) ou no giradouro que dá acesso ao bairro do Altiplano. O importante é que a obra de arte esteja acessível, de preferência em local público. Afinal, como diria o poeta, arte tem que ir onde o povo está.

Em qualquer outro lugar, onde a sociedade tenha noções básicas sobre a importância da cultura e das artes, obras como a do porteiro de Jackson Ribeiro seriam disputadas com avidez. Mas em João Pessoa só é possível ver “arte” nas praças quando um busto (geralmente de políticos) é erguido. Quando peças de arte tomam os logradouros da capital a reação mais comum é a depredação. Os pichadores de plantão não perdoam.

Se os batistas rejeitaram o porteiro não há novidade. Se vereadores reacionários instigam os moradores do Altiplano e do Cabo Branco a protestarem contra a instalação da obra nas imediações desses bairros, pode-se aferir que se trata apenas de picuinha política misturada à ignorância cultural. Mas, e a sociedade pessoense o que pensa sobre o porteiro de aço? Qual o impacto dessa celeuma na formação estética da atual geração da Paraíba??

Obras de arte ao ar-livre não é algo que se vê comumente por aí. Em centros urbanos “avançados”, como NYC, Paris, Madri, São Paulo ou Buenos Aires pode até ser, mas na capital paraibana é considerado, no mínimo, uma extravagância.


Metáfora versus ignorância

Ontem fui ver de perto a obra de arte que é o pivô de tanta polêmica. Depois de uma boa recondicionada e de uma cobertura de tinta anti-ferrugem, o porteiro está mais lindo do que nunca. Permanece no canto da cerca, ao lado direito da Praça do Povo (para quem está defronte pro palco fixo), no Espaço Cultural. É uma peça realmente intrigante. Pedaços de trilhos ferroviários compõem “braços” e “pernas” do que (para mim) mais parece uma espécie de besta pós-industrial. Outras peças de aço foram usadas pelo artista para descrever a “cabeça” e o “tórax” do porteiro. Com quase três metros de altura, a “escultura” de Jackson Ribeiro é a materialização de uma metáfora do espectro pós-industrial, que, certamente, assombrava a cabeça de um artista antenado como o falecido Jack.

Ano passado, durante as aulas de Estudos Culturais no mestrado em Comunicação da UFPE, discutíamos com a professora Ângela Pryston sobre uma instalação feita pelo artista mexicano Marcos Ramírez na fronteira dos EUA com a cidade mexicana de Tijuana, relatada no livro La globalización imaginada, de Canclini. Ramírez criara uma obra semelhante ao cavalo de Tróia, mas com uma sutil diferença: o cavalo de Ramírez tem duas cabeças. O artista criava assim uma metáfora sagaz sobre as relações conflituosas entre americanos e mexicanos. A instalação fazia parte, em 1997, da última edição do Programa de Arte Urbana batizado de inSITE. Canclini comenta que,
“Ramírez não apresenta uma obra de afirmação nacionalista, senão um símbolo universal modificado. A alteração desse lugar-comum da iconografia histórica, que é o Cavalo de Tróia, busca indicar a multidirecionalidade das mensagens e as ambigüidades que provoca sua utilização midiática”.

A metáfora comunicada pelo porteiro de Jackson é um pouco menos óbvia, mas tão carregada de simbologia quanto o cavalo pós-troiano de Ramírez. Mostra, numa figura, o que pode significar uma sociedade baseada no industrialismo capitalista. Materializa os monstros que podem surgir pela exploração desenfreada dos recursos naturais. Se Virginius Mello viu o “inferno” na besta metálica de Jakcson certamente foi o inferno criado pela própria civilização humana na sua corrida cega por uma modernidade construída a todo preço.

O que a ignorância cultura daqueles que preferem deixar o porteiro num porão não deixa ver é que o porteiro amaldiçoado simboliza que a sociedade pessoense daquela época estava preste a inaugurar um rito de passagem entre o arcaico e o moderno. Uma transformação de valores que tem como testemunhas criaturas nascidas daquilo que chamamos “progresso”.