É muito legal quando você recebe de volta algo que havia emprestado a alguém há muito tempo. Um livro, um disco, uma roupa... Foi o que aconteceu comigo recentemente. Tinha ido ao Recife para mais uma atividade acadêmica e levei minha tia, Neves, na carona. Ela ia fazer uma consulta e alguns exames de vista, para tentar livrar-se do glaucoma. Ficamos hospedados no Cordeiro, no apartamento de um amigo antigo dela, Evanildo.
No dia seguinte ele me contou a novidade: “tenho um disco teu aqui do Dire Straits”, disse me entregando o LP duplo em perfeito estado de conservação. Caracas! Que surpresa boa, nem lembrava mais desse disco. Com o “bolachão” de vinil na mão me assolaram logo as lembranças de como aquela raridade chegara até mim. Era o primeiro ano de jornalismo e um dia durante uma das aulas de português, o professor Francelino anuncia na classe que está se desfazendo de alguns LPs, porque estava trocando tudo pela maravilhosa nova tecnologia de CDs.
Naquela época eu era radialista, operador de áudio na Rádio Correio FM, que depois ganhou a alcunha de “Classe A”. Os compact-discs realmente ainda eram coisa de outro mundo. Tanto os cd players quanto os discos eram caríssimos, portanto fora de qualquer possibilidade de entrarem, a curto prazo, em minha lista pessoal de sonhos-de-consumo. O professor trouxe uma relação maravilhosa de discos raros para a turma escolher. Eu não contei conversa: investi uma boa grana na coleção completa (naquela época, 86/87) do Dire. O disco que o Evanildo me devolveu semana passada é o álbum Alchemy, ao vivo e duplo. Maravilhoso, com Sultans of Swing, Romeo and Juliet e Tunnel of love.
Hoje ainda tenho em casa umas três dezenas de discos em vinil, apesar de não ter pick-up para tocá-los. Sou meio saudosista com coisa velha. Livros e revistas também entram nessa mania. Perdi muita coisa emprestando aos amigos oportunistas, esquecidos crônicos ou a gente mal caráter que se aproveitou da minha mania de querer sempre “sociabilizar” tudo aquilo que gosto.
Hoje vivo mais cauteloso. Ainda empresto livros e discos, mas a pessoas que sei que não vão sumir das vistas. Quando é algo que realmente gosto e que é difícil de encontrar outro do mesmo, aí os cuidados são redobrados: anoto e dou um prazo para a devolução. Se farrapar uma vez comigo, nunca mais empresto nada.
Mas como tava dizendo, ainda existe gente boa e honesta. O Evanildo provou isso. Emprestar é, nesse sentido, investir. Apostar no cara que tá tomando emprestado da gente. Emprestar é repartir, dividir, democratizar. Tenho uma boa coleção de livros e cds aqui comigo. Gostaria que muitos mais escutassem esses sons maravilhosos e lessem as idéias fantásticas impressas.
Se tivéssemos certeza de que todos aqueles que nos tomam emprestado alguma coisa, agisse como Evanildo, acho que perderíamos o medo de emprestar. Isso, lógico, tem muito a ver com a idéia de “propriedade”. É meu, e pronto! A posse permanente de obras de arte é, efetivamente, um crime contra a humanidade. Mas a gente vive no capitalismo e aqui é assim mesmo. Comprei, ganhei e deve ficar apenas sob minha guarda.
Tem um ditado antigo aqui no Nordeste que diz: “Quem empresta, nem pra si presta!”. Uma idéia que certamente foi alcunhada por conta dos inúmeros objetos vilipendiados pelos oportunistas do “empresta aí”. Mas se vivêssemos numa sociedade mais comunitária onde a propriedade e o acúmulo fossem ilegais, o empréstimo tomaria o lugar da venda.