Especial: Cordel do Fogo Encantado

O ritmo dos encantados


Por Dalmo Oliveira


fotos: Dalmo Oliveira




















De todos os grupos surgidos na moderna música nordestina, sem sombra de dúvida, o Cordel do Fogo Encantado é de longe a melhor novidade do cenário pop pernambucano depois da efervescência causada no universo musical da região detonada pelo movimento Manguebit, no início da década passada. Depois do estrondoso sucesso do primeiro CD independente, a banda começa a trilhar o caminho da busca por uma sonoridade própria, autêntica, inédita. Essa guinada foi registrada no atual trabalho da Banda “O Palhaço do Circo sem Futuro” (2002/rEc bEat).


“No primeiro disco nós fizemos a celebração dos ritmos tradicionais do Nordeste, que serviram para construir nossa identidade cultural, mas agora o Cordel pede licença para criar seus ritmos próprios”, declara José Paes de Lira, o vocalista que lidera o processo evolucionista do encantados de Arcoverde, mais conhecido como Lirinha.


Numa entrevista exclusiva, Lirinha e Emerson Calado bateram um papo rápido com o jornalista Dalmo Oliveira, enquanto faziam um rango num quiosque insuspeito na praia de Tambaú, momentos antes do show que a banda faria em seguida no projeto Seis e Meia, no teatro Paulo Pontes (veja box). A seguir os trechos mais relevantes da conversa.

Dialética do resgate

Zé da Luz, Manoel Chudu, Manoel Filó, Cancão, João Patriota, Chico Pedrosa, João Paraibano. Pouca gente com menos de 25 anos já ouviu falar nesses poetas. O resgate que o Cordel está fazendo da poesia popular sertaneja é algo inusitado. Primeiro pela forma como a performance do recital poético se encaixa com a música do grupo, interagindo na composição estética teatral vista no palco.


A relação de Lirinha com a poesia popular começou muito cedo. Aos 12 anos ele já acompanhava profissionalmente Ivanildo Vilanova em cantorias nos espaços públicos ao ar livre no centro de Recife. O menino iniciava assim uma carreira que está à beira da extinção no Nordeste brasileiro, a de “declamador popular”, animando ainda mais o imaginário do povo que cercava os repentistas nos intervalos dos desafios de cantorias.


“A gente das grandes cidades não sabe o que ocorre nos interiores do Nordeste. Não conhece a cultura sertaneja. O que fizemos no primeiro momento foi levantar as bandeiras simbólicas da rica cultura nordestina. Mas é importante que ocorra uma relação dialética entre os que fazem o resgate e os antigos mestres resgatados, porque geralmente o que acontece nesse tipo de relação é que quem faz o resgate se torna mais famoso do que o artista que foi resgatado”, diz Lirinha.


E o Mangue virou Sertão...


Mesmo reconhecendo a influência e a importância do Manguebit, os músicos do Cordel deixam claro que a tendência da banda é cada vez mais produzir um som que os diferencie da estética inicial do movimento. Com relação à linha inaugural do primeiro CD, calcado no universo das cantorias, Lira diz que há um certo conservadorismo. “Nós estamos fugindo desse aprisionamento imposto pela cultura popular dos repentistas e poetas populares. Vamos dialogar com outras culturas”, anuncia.


No site oficial do grupo (www.cordeldofogoencantado.com.br) pode-se obter a seguinte definição do atual estágio do Cordel: “A música e a palavra do fogo encantado, penduradas no cordão da grande feira, anunciam passagem do Palhaço sem Futuro. A combustão do som e os gestos da cena burlesca projetam luzes na pequena lona do circo. O círculo da vida. Declaramos o novo espetáculo do nosso desejo. Assumimos o palhaço como símbolo, com suas pinturas de guerra, seu passado ridículo, sua loucura fingida, sua alma impaciente. Sonho que caminha no mundo sem futuro e que faz do presente o fundamento de existência. Mesmo com a guerra na porta, com a lona rasgada e sob a tempestade sem fim, o espetáculo vai começar”. “Passamos para uma proposta mais inventiva, deixando de lado um pouco a vertente mais celebrativa”, sintetiza o vocalista.


Enquanto o Manguebit está carregado pela simbologia caótica urbana recifense, o som do Cordel se vincula ao referencial ruralista do interior nordestino, num confronto estético claro entre as culturas litorâneas (cirandas, cocos) e as manifestações culturais sertanejas (cantorias, emboladas etc).

Dos terreiros de Arcoverde aos palcos de Paris

Uma pergunta insistente e ainda inevitável que sempre fazem aos encantados do Cordel é qual o significado do nome da banda. Lirinha começa explicando o que é um cordel: uma história fantástica, contada em versos; uma espécie de conto matuto. Sobre o fogo, ele diz que é o elemento-símbolo da vida, sempre presente no imaginário sertanejo, através dos raios e coriscos, nas fogueiras de São João, o fogo das lamparinas e candeeiros hipnotizando a criançada buliçosa.


Já para o “encantado” a explicação é mais mística, sobrenatural, religiosa: vem de um ritual dos índios Xucurus, antigos habitantes do sertão de Pernambuco, chamado de “Árvore do Encantados”, onde a tribo cultua divindades e espíritos dos antepassados.


Antes de virar banda, Cordel do Fogo Encantado era um espetáculo mambembe, uma espécie de cordel encenado. Em Recife a banda encontra a alma gêmea africana de sua estética sonora e a segunda referência religiosa, com a chegada dos percussionistas Rafa Almeida e Nego Henrique, ambos ogans de carteirinha de terreiros de candomblé no Alto da Conceição.


As preces e o toré Xucurus, os pontos da umbanda e do candomblé e o transe rítmico provocado pelos tambores compõem a receita fascinante em que se transformou o espetáculo do Cordel, numa evolução artística gestada em Arcoverde, batizada no Nordeste, testada no Brasil e consagrada na Europa.













Lirinha: performance incandescente







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Pernambuco reverencia artistas paraibanos



Não é de hoje que artistas paraibanos servem de referência para músicos e artistas do vizinho Pernambuco. Ariano Suassuna que o diga. E Jackson do Pandeiro, que é um dos maiores exemplos do que estamos falando. Cascabulho, Mestre Ambrósio, Antonio Nóbrega, Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S.A, Lenine, Silvério Pessoa e grande parte das bandas que compõem o atual cenário da música pop da “cidade estuário”, notadamente a galera do Manguebit, bebe, de uma forma ou de outra, na rica fonte da cultura tabajara.


Uns preferem seguir a estética presepeira e o gingado sincopado do nosso rei do ritmo. Já o Cordel do Fogo Encantado preferiu resgatar o lirismo sociológico dos poetas populares desconhecidos do grande público, como recheio do saboroso espetáculo neo-mambembe e pós-cordélico, envolto por uma massa sonora super-criativa de macumba music – um estilo musical que virou febre entre a vanguarda pop tupiniquim, a exemplo do que ocorreu com Chico Science & Nação Zumbi, O Rappa, Otto e Rita Ribeiro.


No segundo CD do Cordel essa estética permeia quase todo o trabalho, com destaque para as faixas “A Árvore do Encantados”, “Devastação da calma”, “Quando o Sono não chegar”, “Britadeira”, “Jetir Xenupre Jucrêgo”, “O Espetáculo”. Arreia caboclo.










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