Seu Cabral: exemplo de dignidade |
Eu era um pirralho franzino e magricela, com as pernas de cambito, como dizem aqui no brejo paraibano, quando meu tio, José Cabral, convidou, a mim e a meu irmão, para ajudá-lo no ofício de ambulante na feira central de Guarabira. Eu devia ter de oito para dez anos. Meu irmão dois anos a menos que eu. As feiras aconteciam às quartas e sábados. O produto a ser oferecido: peças de elástico vendidas em retalho.
No início sentíamos um pouco de vergonha, mas, aos poucos, fomos tomando gosto por aquilo. Era uma tarefa relativamente fácil, bastava circular nas ruas internas no antigo (e magnífico) Mercado Central com os maços de elástico presos numa das extremidades, formando uma espécie de chicote, parecendo um rabo de cavalos.
- Elástico! Elástico! Três peças por um Cruzeiro. Saíamos oferecendo, especialmente para as mulheres mais velhas, donas de casa e afins.
Na terceira semana de atividades já estávamos comercializando outros produtos, como pentes, agulhas, linhas e outras coisas vinculadas às necessidades da costura popular, dos afazeres domésticos e dos cuidados pessoais.
Em algumas oportunidades, acompanhei meu tio e meus primos, Deda e Hildo, em feiras de cidades circunvizinhas, como Pilõezinho, Alagoinha e Pirpirituba. Para mim, aquilo não significava, necessariamente, uma iniciação em ofício visando uma profissão ou um modo de sobrevivência. Era, de fato, uma experiência de vida fabulosa, poder estar no meio do povo, estar fora de casa, sem ser para molecar.
Cabral era meu tio mais humilde, mas também o mais próximo. Sua simplicidade em lidar com a vida, sem autoritarismos, sem arrogâncias, sem melindres, educando apenas pelo exemplo, nos transmitia uma segurança, uma confiabilidade e um prazer imenso em poder estar compartilhando com ele daquela aventura mascate.
A minha experiência em venda ambulante de peças de elástico nas feiras do brejo paraibano duraria pouco. Provavelmente minhas limitações de saúde naquela época me impediram de continuar no “ramo”. Mas foi um período que ficou grafado em minha memória defeituosa para sempre. Preparar a “mercadoria” na noite anterior, acordar cedinho e arrumar as peças para a venda, cortar os rolos de elástico em pedaços de um metro e meio, mais ou menos, montar os “chicotes”, contar as unidades, providenciar dinheiro trocado, dar o troco correto, convencer as compradoras, abordar a freguesia provável, elaborar as frases da propaganda a ser gritada nos anúncios improvisados. Cada detalhe dessa operação de logística, marketing e venda se tornou um ponto fundamental para minha vida futura. Era uma espécie de estágio para ser “gente grande”, aulas práticas de convencimento e de comércio alternativo.
Lembro do cheiro da farinha recém-torrada nos sacões enormes do mercado de cereais. Do feijão macassa vendido a granel. Do barulho que as apanhadeiras de alumínio faziam ao serem enfiadas no amontoado de grãos de milho. Lembro do ar “poluído” com o pólen da farinha, do arroz vermelho e do fubá de milho. Cheiro da carne fresca exposta na parte do açogue. Do peixe “avoador” com sua essência salgada incensando o ar no setor de pescados secos. Dos gaiolões repletos de galinhas e frangos “de capoeira”.
Perto do meio dia, o almoço improvisado na própria feira. Um PF com bife acebolado, macaxeira com galinha etc. A peleja da venda ia até o meio da tarde e quando a feira começava a afracar, batíamos em retirada. Depois era contar o apurado, separar a grana do próximo investimento e guardar alguns trocados para gastar depois com bobagens.
Cabral era sobrinho do meu avô materno, João. Foi criado com minha mãe e meus tios como mais um da prole numerosa originada por João Banqueiro e Rita Rosa. Baixinho em relação aos outros irmãos-postiços, era um contador de causos e histórias fantásticas. Tinha uma memória prodigiosa e uma narrativa envolvente, sempre entrecortada por uma risada quase contida. Dos tios, era o que possuía o maior repertório de “histórias de trancoso”, aventuras de malassombro e de brigas e arengas de personagens impressionantes que habitaram seu imaginário nas zonas rurais do brejo mítico da Paraíba.
A agricultura o abandonou, mas ele jamais abandonou a agricultura. Há alguns anos havia conseguido um pedaço de terra nas cercanias de Guarabira onde plantara umas braças de macaxeiras entremeadas com milho e feijão de corda. Valente, corajoso e trabalhador, seu Cabral nunca deixou que as dificuldades da vida dura tirassem dele o prazer de trabalhar, de produzir, de inventar. Lembro duma época em que ele deu para fazer joões teimosos, aqueles bonequinhos feitos com isopor, papel celofane e um pedaço de metal no fundo, que o faz manterem-se sempre de pé. Era um sucesso com a criançada.
Há alguns anos meu tio descobriu um câncer na próstata, mas lutou bravamente e se curou. No primeiro dia desse ano, Cabral sentiu-se mal com uma forte dor abdominal na região do umbigo. Como a dor não passava, procurou uma unidade de saúde (UPA), onde recebeu atendimento médico superficial. Mesmo com o aparelho de ultrassonografia, não havia ninguém no final de semana que manipulasse a máquina. Depois de algumas horas ele foi liberado e voltou para casa, mas logo em seguida as dores na barriga voltaram com mais intensidade. Foi levado ao hospital regional, mas lá também não foi feito o exame do ultrassom. Seu Cabral estava infartando e ninguém conseguiu diagnosticar o problema. Meu tio viu a aurora de 2012 de maneira trágica e sofrida. Uma parada cardiorespiratória interrompeu sua vida na manhã do primeiro dia desse ano.
Um homem idoso, negro e pobre costuma ser forte candidato à negligência dos médicos que atendem no serviço de saúde pública do nosso país. Fico imaginando se tio Cabral possuísse um vistoso plano de saúde privada, se fosse encaminhado com rapidez para a capital... Teria sobrevivido?