fotos: Dalmo Oliveira
Família se alimenta em rua do conjunto Geisel, em João Pessoa (PB)
por Dalmo Oliveira
"A luta contra a fome e sua possível eliminação da superfície da Terra não constitui utopia, mas um objetivo perfeitamente realizável nos limites da capacidade dos homens e das possibilidades da terra"
Josué de Castro
Uma pesquisa finalizada no ano passado mostra uma realidade cruel da histórica guerra de gêneros. Nos 14 municípios onde os questionários foram aplicados foi verificado que as meninas, com idade inferior aos cinco anos, enfrentam problemas de desnutrição e insegurança alimentar numa proporção bem mais acentuada que os meninos. “A desnutrição foi mais grave entre as meninas, especialmente no indicador de déficit de peso para a idade”, diz o professor Rodrigo Pinheiro de Toledo Vianna, do Departamento de Nutrição, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, um dos coordenadores da pesquisa, iniciada em 2005.
Com o título de “Diagnóstico de Insegurança Alimentar na Paraíba”, a pesquisa é um alerta também para a questão da relação de gêneros numa realidade sociológica marcada pela predominância masculina e suas consequentes extensões, como o patriarcado e o machismo exacerbados. Sem dúvida um sério problema social em cidades do interior nordestino, como aquelas onde a pesquisa de Vianna foi realizada.
Na opinião de Rodrigo Vianna, as meninas são mais afetadas porque acabam recebendo menos atenção dos adultos, enquanto que os meninos usufruem de uma dedicação especial. Do ponto de vista antropológico, o “esquecimento” que atinge as meninas é o reflexo de uma cultura que vê no macho as maiores chances de perpetuação da espécie. As fêmeas seriam, numa percepção evolucionista, “desenhadas” para serem mais quietas, mais calmas, chamando menos atenção para si, necessitando, por isso, de menos recursos. Por outro lado, é a própria fêmea que se encarrega de cuidar e de alimentar os menores, abrindo mão até de sua própria sustentabilidade nutricional. É comum no Nordeste ver meninas a partir dos seis anos cuidando dos irmãos pequenos. Na mesa, na hora das refeições, a menina sofre por causa dessa determinação cultural ao ficar em segundo plano no momento de receber a comida.
Os entrevistadores ouviram cerca de cinco mil famílias nos municípios que em 2002 foram contemplados com as primeiras ações do programa federal Fome Zero. Os municípios pesquisados foram: Araruna, Areial, Aroeiras, Bananeiras, Bernadino Batista, Boqueirão, Cacimba de Dentro, Esperança, Itabaiana, Nova Floresta, Picuí, Queimadas, São José dos Ramos e Umbuzeiro. Rodrigo Vianna diz que nesse último a situação da insegurança alimentar da população é mais caótica, com 22,8% na categoria grave. Pelos dados da pesquisa, a Paraíba possui hoje cerca de 11% de sua população em situação de insegurança alimentar grave.
fonte: Rodrigo Vianna/CCS-UFPB
Com relação ao local de moradia, 14% dos domicílios pesquisados que apresentam um quadro grave de insegurança alimentar e nutricional estão situados na zona rural, contra 9% da zona urbana. Do total de domicílios investigados que apresentam problemas de insegurança alimentar, 2.404 casos estão no perímetro urbano, contra 2080 casos na zona rural.
Os pesquisadores dividem a problemática da insegurança alimentar em três níveis: Insegurança alimentar grave, que é o estado onde a família convive com a situação real de fome, obrigando os adultos e as crianças a pular refeições ou até mesmo ficarem até um dia inteiro sem comida. A considerada “moderada”, que significa a restrição na quantidade de alimentos disponíveis para a família, e a insegurança alimentar leve, “que representa o estado de diminuição da qualidade da alimentação das famílias”, explica o nutrólogo da UFPB. “Nas famílias com número de refeições inferiores a três por dia a situação começa a se agravar”, complementa.
Esse é o caso da família do desempregado Manoel Andrade, 34, morador da comunidade Nova República. Encontramos ele e a família perambulando pelas ruas do conjunto Ernesto Geisel e adjacências em busca de alimento e oportunidades de trabalho. A família de Andrade se compõe de quatro crianças mais a esposa, dona Josefa, 27. São crianças com seis, quatro, três e a mais nova de um ano e poucos meses. Três meninos (João, 6, Inácio, 4 e Beto Jr., o caçula) e a menina Jussara, 5. “Os mais velhos ajudam a pedir comida e a gente come tudo junto”, diz a mãe, durante o almoço na calçada. “Acho que os meninos são mais vivos. O novinho ainda tá no colo e a menina me ajuda muito a cuidar dele quando tenho que sair”, relata dona Zefa, a mãe da prole que apresenta um aspecto inegável de desnutrição.
“De vez em quando eu faço bico, limpo quintal, lavo carro, mas emprego fixo faz tempo que não tem. O jeito é botar todos pra pedir na rua”, diz Andrade. Ex-presidiário, com tatuagens na perna direita e no pescoço, o pai de família não é exatamente o modelo padrão de provedor. Mas nem por isso se mostra relapso com os filhos.“Na hora de comer a gente divide o que tem”, comenta.
O menino Júnior está sem roupas. Apesar do calor intenso, a impressão é de que sua nudez está mais relacionada com as péssimas condições da família do que pela elevada temperatura. Perto das 13 horas, as crianças se distraem com pirulitos. Algumas delas acabaram de conseguir pedaços de carne numa mesa no bar de seu Carlos, mais conhecido pelos fregueses como “Bar do Carrá”. “Eles passam de vez em quando aqui, pedindo nas casas. A prefeitura ou o estado deviam fazer alguma coisa com isso”, opina o dono do estabelecimento, contemplando a cena da família se alimentando na rua.
Negros e mestiços mais vulneráveis
A pesquisa também conclui que a prevalência da insegurança alimentar é maior quando há nos domicílios adolescentes e crianças. Outro agravante é quando a pessoa de referência da casa é do sexo feminino, provavelmente pelo fato de serem as mulheres trabalhadoras, historicamente, pior remuneradas que os homens. A situação se agrava ainda mais entre a população negra ou parda e nos domicílios com rendimentos per capita de no máximo um salário mínimo.
Em relação às crianças, a inseguridade alimentar piora na mesma proporção de quanto menor for a escolaridade dos pais. A pesquisa mostrou também que crianças de cor (da raça negra, também chamadas de “parda”, “mulata” ou “morena”) estão mais vulneráveis. Na região Nordeste, 6% das crianças na faixa até cinco anos de idade estão desnutridas, um quadro bem melhor que o da década de 70, quando 50% delas estavam nessa situação.
A pesquisa foi realizada por três professores e dez alunos de iniciação científica de várias áreas, como Nutrição, Enfermagem e Serviço Social. Eles fizeram perguntas do tipo: “Nos últimos três meses a(o) senhora (senhor) teve preocupação de que a comida na sua casa acabasse antes que a(o) senhora(senhor) tivesse condição de comprar, receber ou produzir mais comida?”. Perguntou-se também se nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade, ficou sem comer por um dia inteiro porque não havia dinheiro para comprar a comida.
“O IBGE fez pesquisa similar e os dados foram muito parecidos. A pesquisa foi conduzida com base na lei de segurança alimentar. Por esses dados, 50% da população estaria em insegurança”, acrescenta o pesquisador da UFPB. Vianna diz que, ao contrário do que ocorria em décadas anteriores, a desnutrição é pequena, mas um dado novo e curioso chamou a atenção dos especialistas: Há um quadro de obesidade crescente. “Dez por cento dos homens adultos estão obesos e 40% tem excesso de peso. Com relação às crianças, seis por cento estão com excesso de peso”, revela o pesquisador.
Ele diz que esse fenômeno nutricional se dá porque a população mantém hábitos ruins de alimentação por falta de recursos, preferindo investir o pouco recurso disponível em alimentos de baixa qualidade nutricional, como o macarrão, e em alimentos super-calóricos e ricos em açúcar. “O que temos é uma bomba-relógio armada para explodir mais adiante, porque estamos saindo de um quadro onde o problema era doenças ocasionadas pela desnutrição, como anemia, para gerar doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e complicações cardiovasculares”, adverte.
Para Rodrigo Vianna, falta política pública para garantir uma alimentação saudável. “A má alimentação aparece por vários aspectos, desde a falta de hábitos alimentares saudáveis até a dificuldade em se conseguir dinheiro para a compra de alimentos de melhor qualidade. Precisamos também melhorar a atenção primária nos sistemas de assistência públicos como o SUS”, aconselha.
A Chamada Nutricional realizada em 2005 no Semi-árido do Nordeste e no Norte de Minas, pelo Ministério do Desenvolvimento Social, também apontou problemas similares aos encontrados na pesquisa da Paraíba. Vianna diz que no ano passado a campanha de vacinação dos índios e quilombolas também encontrou quadros preocupantes de insegurança alimentar e nutricional junto a essas comunidades.
Para saber se há um estado de desnutrição nas crianças os nutricionistas comparam as medidas de dois itens: o déficit de peso e o déficit de altura. O primeiro diz ao investigador se a criança tem passado por privações nutricionais recentes. Já a deficiência na altura das crianças pode mostrar que elas foram submetidas a privações alimentares e de nutrientes durante um período longo de suas existências, chegando, portanto, ao que os especialistas chamam de desnutrição crônica. Os dois tipos de déficits têm uma implicação direta na qualidade de vida e até na espectativa de vida das pessoas. No Brasil, a esperança de vida, ao nascer, é de 71.7 anos. No Nordeste essa espectativa cai para 68.6 e na Paraíba é menor ainda: 67.9.
Foi o livro “Geopolítica da Fome” (Ed. Casa do Estudante do Brasil, Rio, 1954), do pernambucano Josué de Castro, que inaugurou um alerta nutricional para o surgimento, no Nordeste, de um novo biótipo humano, o homem-gabiru, raquítico e pouco maior do que um anão, como resultado de séculos de desnutrição.
Alguns especialistas do problema, como Bertoldo Kruse Grande de Arruda, professor Adjunto do Departamento de Medicina Social da UFPE e membro do Conselho Consultivo Técnico-Científico do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), analisa a problemática alimentar e nutricional em dois níveis: 1) microeconômico, “Que envolve os fatores estruturais, aponta para medidas de longo prazo, de modo a assegurar uma oferta qualitativa e quantitativa de alimentos, em função das necessidades nutricionais da população”. E 2) macroeconômico, que segundo Kruse abrange os fatores do microambiente, confere elevado peso à demanda, que se faz de modo desigual em virtude, predominantemente, do poder de compra do consumidor, e considera a influência dos fatores ocupacionais, fisiológicos e sobretudo patológicos.
“É imprescindível ter em mente que estes setores se complementam, mutuamente se reforçam e consubstanciam a definição de uma política integrada de desenvolvimento econômico e social. As doenças carenciais não têm uma distribuição aleatória na população. Há um risco de ocorrência que pode ser estimado ou previsto em face de determinadas variáveis. Além dos aspectos relativos à oferta e demanda de alimentos, no caso brasileiro faz-se mister chamar a atenção para alguns condicionamentos que interferem na probabilidade do aparecimento da desnutrição: o predomínio de populações jovens (70% no grupo materno-infantil), com elevado padrão reprodutivo, prole numerosa, franco desequilíbrio na relação entre pessoas economicamente ativas e dependentes, gestações em menores de 20 anos, ou inversamente, em maiores de 35 anos”, acrescenta o pesquisador.
Vianna, retrato da insegurança alimentar na PB