Balula morreu: viva Balula!
Por Dalmo Oliveira*
Eu ainda não me acostumei com a idéia da morte de João Balula. Tentei visitá-lo quando esteve internado no Pavilhão Henfil. Levei uma revista para ele passar o tempo. Quando entrei no quarto ele já havia anunciado que não estava mais disposto a receber novas visitas. Encontrei-o todo encoberto num lençol encardido de hospital, escondendo-se do mundo. No quarto havia mais dois pacientes. Tentei tabular um diálogo com um deles para saber como estava a situação deles. O cara me disse que Balula mantinha uma febre freqüente.
O pior veio na saída: no quarto da frente deparei-me com um quadro dantesco, onde duas figuras humanas compunham a cena. Uma delas era um paciente deitado e algemado a uma cama de ferro. Na porta do quarto um policial militar vigiava o doente. Rapidamente percebi que se tratava de um presidiário em estado terminal pela AIDS.
Pensei “meu Deus, onde foram colocar o meu amigo!”. Saí às pressas pelo corredor pouco iluminado do pavilhão, olhando pelos cantos os grupos de pacientes internados naquela espécie de purgatório. No saguão do hospital comentei com Mabel Dias, que havia me acompanhado na visita, o quanto seria deprimente para Balula estar internado ali.
Disse a ela que precisávamos arranjar um outro hospital para transferir o companheiro. Sai de lá com essa idéia na cabeça. Não é possível que não se consiga um hospital para internar Balula com mais dignidade. Não entendia como o governo havia investido tanta grana para reformar a recepção do Clementino Fraga, mas as condições lá dentro continuavam tão ruins.
Na semana seguinte recebi a notícia que a saúde do Balula estava melhor e que ele havia saído do quadro crítico, daí relaxei com relação à vontade de tirá-lo do Henfil. Os dias se passaram e na fatídica noite do estranho eclipse lunar, por volta da 1h da manhã o telefone fixo toca. Era o professor Antonio Novaes: “Dalmo, o Balula morreu!”, disse-me de uma só lapada.
Durante o velório e enterro do cara, acho que fui uma das pessoas que mais chorou. Havia tempo que não chorava tanto. Nem nas piores crises álgicas da anemia falciforme que me fazem não esquecer da condição humana miserável que herdei dos meus antepassados africanos. Mas aquele não era um choro de dor. Chorava e sentia uma angústia triste pelo fato de não ter afido quando podia ter tomado alguma providência para dar dignidade à internação do meu amado companheiro. A sensação de omissão se apoderava da minha mente com um nitidez insuportável.
Nada adiantava, o pior acontecera, meu amigo estava morto. Perdíamos simplesmente o maior militante da causa do povo negro paraibano, de maneira torpe, desumana, cruel. Logo agora que eu abraçara a militância no movimento negro exatamente para tentar colaborar no quesito da saúde da população. Não me conformo!
Nas semanas seguintes, os movimentos sociais que lidam com DST/AIDS e as pessoas mais chegadas a Balula resolveram denunciar as condições do Pavilhão Henfil. Começamos a pensar de que forma poderíamos agir para que outras vítimas da AIDS não morressem por falta de uma UTI. Alguns atos públicos foram planejados e já realizados, mas ainda estamos longe de resolver o problema. A sociedade civil precisar exigir dos poderes públicos que algo seja feito para dar dignidade às pessoas que estão tentando escapar da morte provocada pela AIDS no único hospital de referência do Estado.
Para mim ficou a certeza de que é preciso acabar com uma estruturar hospitalar que mais parece um porão para depósito de soropositivos condenados à morte. Na minha cabeça ficou a idéia de que esse tipo de atendimento é uma espécie de punição a mais para aqueles que contraíram o vírus, seja em que circunstâncias forem.
PÓSTUMAS HOMENAGENS
Desde que o Balula morreu as homenagens ao fantástico guerreiro da negritude e de outras causas populares não cessam de acontecer. A mais recente foi ventilada por dirigentes da fundação onde ele trabalhava, a Funjope. A idéia foi comprada pelo vereador Fuba e rapidamente ganhou adesão de todos que testemunharam o empenho do Balula em prol da cultura popular pessoense. Trata-se de dar seu nome à lei de incentivo à cultura do município de João Pessoa, que passaria a ser denominada “Lei de Incentivo à Cultura Viva Balula”.
Homenagem justíssima na concepção de inúmeros promotores culturais que interagiram com o militante do movimento negro tabajara. Além do reconhecimento, a homenagem poderá funcionar também como estímulo à auto-estima de uma comunidade que, a despeito de toda a contribuição que deu e dá à cultura local e nacional, permanece numa posição de inferioridade e descriminação em relação à “branca” elite paraibana.
Elite que, aliás, já deflagrou uma campanha reacionária à propositura do Fuba, através das declarações do jornalista Carlos Aranha divulgadas, via correio eletrônico, pela internet, defendendo que no lugar do negro Balula, a mudança no nome da lei deveria homenagear o já também falecido Altimar Pimentel. Evidentemente ninguém poderá imputar ao jornalista e compositor de “Sociedade dos poetas putos” o rótulo de porta-voz da elite branca e racista tabajara. O que nos parece, nesse episódio, é que o discurso de Aranha em defesa de Altimar, se constituiu, provavelmente, e até de forma inconsciente, a partir dos pressupostos de um ideal de cultura como exercício exclusivo de determinados setores sociais, geralmente privilegiados do ponto de vista econômico e social.
Comparar João Balula e Altimar Pimetel é, no mínimo, ridículo. Ambos tiveram sua importância no fortalecimento da cultura paraibana, com suas competências, em campos sociais diversos (e às vezes antagônicos). Altimar como autêntico catalogador e fomentador de manifestações culturais tradicionais. Balula como agitador cultural dos guetos, periferias e outros espaços alternativos e marginalizados da cultural popular local. Pimentel como o clássico intelectual forjado pela academia. Balula o típico intelectual orgânico gramischiniano. Um que utilizava as ferramentas clássicas da pesquisa, outro que se valia de instrumentais alternativos, como intuição, improviso e atos anti-convencionais.
Por fim, é preciso entender que esse tipo de disputa se coloca muito mais no campo ideológico do que no meramente artístico-cultural. Tratar a cultura nesse patamar de discussão é semelhante ao tratamento que os soropositivos das classes subalternas recebem no Henfil. Simplesmente vergonhoso!
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* Dalmo Oliveira é jornalista, militante do movimento negro da Paraíba, mestre em Comunicação pela UFPE e coordenador geral da Associação Paraibana de Portadores de Anemias Hereditárias.