Por Dalmo Oliveira**
No final de junho assisti uma palestra sobre anemia falciforme que me deixou arrepiado. Não só pelo fato de ser portador do mal, mas pelo dano que esse problema de saúde pública causa especialmente entre as crianças pequenas da nossa população afro-descendente. O médico palestrante, Dr. Rodolfo Delfini Cançado, é uma das maiores autoridades brasileiras do assunto e atua como professor adjunto na disciplina de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e é assessor técnico para hemoglobinopatias do Ministério da Saúde do Brasil. Cançado falava para uma platéia mais que especial: 30 representantes de ong’s de portadores da doença falciforme de vários estados brasileiros.
O especialista falou por quase duas horas e mostrou pesquisas importantes sobre o problema que atinge a produção das hemácias sanguíneas. Ele apresentou, por exemplo, um estudo que analisou o registro de óbito pelo Sistema de Informações de Mortalidade do SUS no período de 1979 a 1995, em que os pesquisadores descobriram que 25% dos óbitos ocorreu em crianças com menos de quatro anos. Desse grupo, 50% chegaram ao óbito até a idade de 15 anos. Os médicos descobriram que a média de idade ao óbito foi de 18,6 anos naquele período. Considerando a real possibilidade do sub-registro, avaliou-se uma média de 140 óbitos/ano causados por complicações decorrentes da AF.
Noutra pesquisa mais recente, Loureiro & Rozenfeld (2005) publicaram na Revista de Saúde Publica dados sobre internações hospitalares entre os anos de 2000 e 2002, quando 9.349 pacientes foram internados por causa da doença falciforme. A mediana de idade desses pacientes era de 12 anos. O estudo notou que 70% das internações ocorreram com pacientes com menos de 20 anos. Pacientes com idade entre 26,5 a 30 anos foram os que mais evoluíram ao óbito. “A taxa de óbito entre adultos com mais de 20 anos foi cinco vezes maior do que entre crianças e adolescentes”, comenta Cançado.
Dopller transcraniano pode
diminuir incidência de AVCs
Ano passado o pesquisador Kirkham F.Nat publicou um estudo onde mostra que a incidência de acidentes vasculares cerebrais (AVCs) em crianças com a doença falciforme varia de 8 a 10 % naquelas na faixa em torno do cinco anos. O risco relativo da ocorrência de AVC em doentes falciformes pode ser até 300 vezes maior em relação aos indivíduos sem a doença. A pesquisa diz que 11% terão AVC até 15 anos de idade. de 17% a 22% será do tipo “silencioso”. As crianças apresentam um índice perto dos 80% de sofrerem AVC isquêmico, e entre os adultos, 20% dos doentes sofrerão derrame cerebral hemorrágico. Os médicos perceberam ainda que a recorrência de novo AVC pode ocorrer em 2/3 dos pacientes não tratados, a maioria no prazo de 2 a 3 anos do evento inicial.
O médico hematologista chega a duas conclusões preocupantes a partir dos dados das pesquisas: a primeira é de que o cuidado com as crianças abaixo dos quatro
anos deve ser redobrado, e a segunda é que, na fase adulta há uma tendência maior de que as internações de pacientes com a doença falciforme evolua para óbitos.
Políticas públicas
Fase 2 do teste do pezinho ainda não chegou
à Paraíba e só é feito em 13 estados brasileiros
Rodolfo Cançado abordou ainda questões relacionadas às políticas públicas específicas para a questão da anemia falciforme. Ele lembro que em 92 uma Portaria do Ministério da Saúde instituía a obrigatoriedade dos exames de detecção de fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito na chamada “Fase I” do teste do pezinho. “Em 2001, mediante a Portaria no 822/01 do Ministério da Saúde, foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal, incluindo a triagem para as hemoglobinopatias, quando passou a ser incluído o exame para anemia falciforme”, lembra. O especialista diz que apenas 13 estados brasileiros implementaram essa segunda faze do teste do pezinho onde se detecta a doença falciforme. A Paraíba, por exemplo, ainda não faz parte desse grupo.
Cançado considera que a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias representou passo importante no reconhecimento da relevância dessas doenças como problema de Saúde Pública no Brasil. “Ela marca o início da mudança da história natural da doença, corrigindo antigas distorções e trazendo vários benefícios, sobretudo a restauração de um dos princípios fundamentais da ética médica, a igualdade, garantindo acesso igual aos testes de triagem a todos os recém-nascidos brasileiros, independentemente da origem geográfica, étnica e classe sócio-econômica”, avalia o médico paulista.
13 milhões de crianças triadas nos últimos cinco anos
Nos últimos cinco anos, depois que o Governo Federal instituiu o Programa Nacional de Triagem Neo-natal, cerca de 13 milhões de crianças já foram beneficiadas. Foi a partir daí que o Brasil pode ter uma idéia melhor da gravidade da doença falciforme na sua população. Descobriu-se, por exemplo, que o nascimento anual de pessoas que carregam apenas o traço falciforme é de 200 mil. A segunda fase do teste do pezinho, que detecta a anemia falciforme, ainda não foi implantado na Paraíba. Na população geral a incidência de pessoas com esse traço genético varia ente 2 a 8%. “Mas, entre os cidadãos afro-descendentes ela aumenta para uma taxa de 6 a 10 por cento”, informa Rodolfo Cançado. Há uma expectativa de que o Brasil possua hoje cerca de 7.200.000 indivíduos com herança genética do traço falciforme.
Com relação às pessoas com a doença falciforme completa (aquelas que nasceram com os dois genes SS que formam a hemoglobina) os números também são preocupantes. Os casos estimados estão numa faixa de 25.000 a 30.000 indivíduos. Eu sou um desses. “São cerca de três mil casos novos por ano no país, com uma estimativa aproximada de um caso para cada 1000 nascidos vivos”, revela o pesquisador.
Dr. Cançado: Doença falciforme é o maior problema
de saúde pública brasileiro
Foto: Arquivo pessoal
Rodolfo diz que a maioria dos óbitos ocorreu nos dois primeiros anos vida, demonstrando o risco maior nesta idade e uma maior necessidade da organização da atenção aos eventos agudos ocorridos principalmente nesta faixa etária. “A maioria dos óbitos ocorreram em ambiente hospitalar,mas ainda é alta a ocorrência de óbitos domiciliares. A infecção foi a principal causa de óbito, mas o sequestro esplênico se destaca como importante evento determinante de mortalidade”, comenta o hematólogo.
“Mesmo após a implantação de um eficiente programa de triagem neonatal, muitos óbitos poderiam ser evitados pela educação e melhoria da qualidade da assistência à saúde . A capacitação dos profissionais da saúde, envolvidos diretamente na atenção básica, para o atendimento aos eventos agudos da doença falciforme e os programas de educação voltados para o paciente e familiares são eixos importantes para o desenvolvimento do programa”, defende.
Apalpar o baço da criança em crise é primeira providência
para detectar o sequestro de sangue para esse órgão
Esperança nas novas drogas e tratamentospara detectar o sequestro de sangue para esse órgão
O quadro devastador da doença falciforme começa a ser debelado com a adoção de novos medicamentos, como a Hidroxiuréia, que ajuda na diminuição da morbidade, diminuindo também a mortalidade dos pacientes, segundo pesquisa realizada em 2003. Os autores garantem que a medicação em pacientes falcêmicos garante a redução dos episódios de Síndrome Torácica Aguda (STA), a redução dos eventos de obstrução dos vasos sanguíneos (vasoclusão, na linguagem médica). A pesquisa diz que a adoção da Hidroxiuréia proporciona uma redução de 40% da mortalidade nos portadores do defeito genético.
Alguns estudos clínicos dizem que há uma tendência crescente do número de pacientes com a doença falciforme candidatos à transfusão regular de hemácias. A repetição das transfusões provoca uma sobrecarga de ferro, comprometendo o funcionamento de vários órgãos. “Isso é um fator prognóstico desfavorável e, portanto, porcentagem significativa dos pacientes tem indicação de tratamento ferroquelante. O processo de quelação de ferro por medicamentos reduz tanto a morbidade quanto a mortalidade em pacientes com o problema”, diz o professor Rodolfo Cançado.
Ele recomenda que os portadores da doença falciforme façam uso de medicamentos e de vacinas, como Ácido Fólico, analgésicos, Hidroxiuréia (para pacientes com indicação), quelantes de Ferro, Penicilina (oral ou benzatina) ou Eritromicina (no caso de alergia à Penicilina), sempre verificando a possibilidade de alergia a esse medicamento. Por fim, o médico recomenda que os portadores do mal sanguíneo busquem sempre especialistas de saúde, que atuem principalmente nas áreas de oftalmologia, pneumologia, neurologia, endocrinologia, cardiologia, nefrologia, ginecologia/obstetrícia, ortopedia, hemoterapia. As pessoas com a doença falciforme também precisarão de especialistas para medidas de suporte, a exemplo do assistente social, enfermeiro, odontólogo, psicólogo e fisioterapeuta.
As diretrizes recomendadas para a Política Nacional de atenção ao doente falciforme é que aja o seguimento das pessoas diagnosticadas com hemoglobinopatias pela Hemorrede Pública do SUS, bem como o acompanhamento das pessoas com diagnóstico tardio de doença falciforme. “É preciso garantir a integralidade da atenção aos acometidos por esse mal, proporcionando o atendimento por equipes multidisciplinares, estabelecendo interfaces entre as áreas da saúde da família, saúde da mulher, saúde bucal, imunizações etc”, diz Cançado.
O médico defende uma melhor organização da rede de assistência , respeitando-se a descentralização e levando em consideração a autonomia dos gestores públicos quanto a sua estrutura de organização da atenção.
“Capacitação de recursos humanos, com a criação de centros de referência de capacitação e informação, como o mineiro CEHMOB, ligado à UFMG, ou como o carioca CR Saúde Bucal, para dinamizar a atenção básica à população afetada pelas hemoglobinopatias”, prescreve Dr. Rodolfo.
Ele aposta também na promoção e no incentivo à pesquisa, na realização de eventos científicos; na produção de material didático para capacitação de trabalhadores do SUS e para informação da população. Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco são os estados de maior prevalência e os locais onde oficialmente há um programa ou uma ação pública funcionando.
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* Artigo produzido a partir de dados apresentados pelo Dr. Rodolfo Delfini Cançado em palestra do curso Gesc Net/Norvatis, em São Paulo, dia 20/06/2008.
**Dalmo Oliveira, jornalista, mestre em Comunicação pela UFPE.
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