quarta-feira, março 04, 2009

Outro olhar sobre o carnaval baiano

foto: Dalmo Oliveira





















Outro olhar sobre o carnaval baiano1

Nos dias 22 e 23 de fevereiro participei de uma experiência muito interessante na área de jornalismo, indo a Salvador para uma cobertura especial de aspectos do carnaval soteropolitano. O convite foi feito pela Agência Afro-Latina e Euro-Americana de Informação (ALAI). Fomos ciceroneados pela fundadora da ONG, a jornalista Ana Alakija.






O programa se iniciou ao meio dia do domingo, 22, quando conhecemos o Observatório da Igualdade Racial e Violência contra a mulher, da Secretaria Municipal da Reparação de Salvador (SEMUR). A estrutura foi montada na ladeira de São Bento,quase na bifurcação da Castro Alves com a Avenida 7 de setembro. Nesse horário, a SEMUR oferecia uma suculenta feijoada baiana para os convidados. Ali encontrei meu camarada de lutas pelos direitos das pessoas com a doença falciforme (como eu), Altair Lira, presidente da Fenafal, e sua esposa, a enfermeira Maria Cândida Queiroz, que atua no programa de atenção aos portadores dessa hemoglobinopatia naquele município.








Lira acaba de ser contratado como consultor da SEMUR. “Hoje precisamos atuar na gestão de conflitos sociais”, diz Altair. A ONG que ele coordena, ABADFAL, acaba de lançar uma cartilha para a rede pública de ensino falando de anemia falciforme numa linguagem mais light.



A secretária municipal da Reparação, Maria Alice Pereira, revelou que a Prefeitura de Salvador deve tornar permanente o Observatório da Discriminação Racial e da Violência contra a mulher, ampliando sua ação para o ano inteiro, para além do período carnavalesco. O observatório foi criado em 2005 para receber denúncias de discriminação contra pessoas que trabalhavam no carnaval, principalmente ambulantes, afrodescendentes e mulheres. "A idéia era ver como a sociedade tratava esses pessoas que na verdade são a base do nosso carnaval. Agora queremos efetivamente tornar esse monitoramento permanente", diz Alice. Com uma infra-estrutura montada na Ladeira de São Bento, o Observatório está localizado no coração da folia baiana, próximo à Praça Castro Alves e ao Campo Grande, no chamado Circuíto Osmar. Entre as personalidades ligadas ao movimento pela igualdade racial, visitou o Observatório, o historiador paulista Hélio Santos, membro do Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD). Ele nos contou que está envolvido na criação, no Rio de Janeiro, do "Selo da Diversidade" junto à secretaria da reparação carioca.

O Observatório funciona, na verdade, como um point de encontro da militância negra de Salvador, por onde passam ativistas, jornalistas, políticos e outras categorias diretamente interessadas no combate ao racismo e à violência contra mulheres. A idéia é tentar monitorar os eventos dessa categorias. Mas na cabeça da população parece funcionar de forma simbólica, ao dizer para os foliões “nós nos importamos com a exploração de negros e mulheres”.


foto: Dalmartim Oliveira














feijoada no Observatório


Do ponto de vista humanístico ou antropológico, o carnaval soteropolitano em 2009 poderia ser traduzido num misto de celebração pública da festa, do esgotamento do modelo axé music, do fortalecimento dos grupos fundadores, ligados diretamente à cultura afrobaiana, como os Filhos de Gandhi, completando 60 anos em 2009. Felizmente ou não, acabamos sem poder acompanhar efetivamente o desfile dos blocos etc. Mas não era exatamente esse intuito. O que podemos afirmar, enfim, é que o carnaval de Salvador está cada vez mais multicultural.



Primeiro porque no grande circuito só aumenta a participação de artistas de fora da indústria carnavalesca axezeira da Bahia. Depois porque durante a fuzarca a cidade fica cheia de alternativas ao axé, aos afoxés e outros ritmos hegemônicos na sonoridade da festa. O Pelourinho se transformou na ilha de resistência alternativa ao chamado “carnaval baiano”. Ali o nativo e os turistas (continuam indo aos milhares para a cidade do Salvador) podem usufruir de uma boa e velha bandinha carnavalesca, uma troça. Na praça do chafariz luminoso eu vi até apresentação de RAP, Break e outros trecos importados. Tem de tudo!

Sem falar na super-programação que foi montada nos largos. Ainda no domingo nós assistimos à apresentação do trio Simples REPortagem, no Largo Tereza Batista. Estava programada a vinda do lendário rapper estadunidense Afrikka Bambbatha, mas o show foi cancelado dada as condições de saúde de um dos fundadores do movimento Hip Hop.






foto: Dalmo Oliveira

O trio do Simples REPortagem: crítica social ácida



Na praia de Piatã, perto de onde costumo ficar hospedado na cidade (Jaguaribe!), rolava mais uma edição do descoladíssimo festival de hard core, que, anualmente, faz o contra-ponto ao tanto quanto profano carnaval do “axé”. Pra se ter ma idéia, esse ano uma das atrações foi a também lendária banda paulista Inocentes.


O meu primo, Matias Aquino, foi um dos corajosos jovens soteropolitanos que se dispôs a desembolsar R$ 200 pelo abadá estilisadíssimo dos Filhos de Gandhi. Ele tentava convencer minha prima, Mônica Nunes, de que queria sair no afoxé não por causa do assédio das mulheres aos membros do bloco, mas tão somente por conta da bela tradição cultural que o Gandhi simboliza para os soteropolitanos. Na concentração, ainda no Pelourinho, Matias e seu primo, Ravi Aquino, escolhiam colares com contas azuis e brancas para pendurar no pescoço e distribuir pelo trajeto. Quando o vocalista principal da banda do Filhos de Gandhi começou a gritar “Ajaiô!”, um arrepio ancestral tomou meu corpo.

Outro momento inesquecível foi o encontro com as senhoras baianas vindas de São Francisco do Conde, no Recônvaco Baiano. Aí sim, as legítimas baianas! Acho que é um viés interessante para a ALAI explorar: a tradição cultural do interior do estado e o diálogo entre as raízes culturais e a festa axé que se institucionalizou em Salvador.



foto: Dalmo Oliveira

Tradicionais baianas do Recônvavo



No Pelô ainda pude fotografar um maracatu rural misturado com tribo indígena a acompanhar uma fascinante passista negra vestida de Yemanjá. Uma imagem simplesmente linda, harmônica e mística. Esse é o lado “raíz”, do carnaval que falamos. Sem a presença da invasiva industria cultural do carnaval axé. Talvez, uma saída para a cidade seja justamente espalhar seu carnaval pluricultural para as periferias, onde as raízes da cultura do povo baiano são melhor preservadas.
foto: Dalmo Oliveira





Mas foi também no Pelourinho onde pudemos constatar que a desigualdade social na cidade continua longe de ser resolvida. Deitado no chão da praça, dormindo profundamente, talvez drogado e doente, fotografei um menino que devia ter uns nove anos de idade. Mesmo com o tempo chuvoso e toda a agitação do lugar, a criança se encolhia no chão sem que qualquer barulho o despertasse. Roupas velhas e imundas cobriam o corpo negro e magricela do garoto. Para terminar de compor a cena deprimente, um cão vira-latas também dormia próximo ao menino. Procurei localizar algum agente de saúde no local, mas não detectei nenhum. Ironicamente, perto dali lia um outdoor da Prefeitura informando que praquele carnaval 2000 profissionais de saúde seriam mobilizados. Aquela situação ficou me incomodando até que expus o drama do garoto para o Altair Lira, mas quando fomos em busca do garoto ele já havia sumido.

foto: Dalmo Oliveira

Vida de cão: menor dorme na praça durante o carnaval do Pelourinho



Na segunda-feira, 23, fomos acompanhar o bloco de arrasto “Mudança do Garcia”, que esse ano foi proibido de usar trios elétricos. O bloco ganhou fama pela forma esculachada como seus foliões desfilam e por causa dos inúmeros protestos que a população faz levando cartazes para a avenida com críticas a Deus e o mundo. Dentro do Mudança vários outros blocos se incorporam. Nós engrossamos as fileiras do bloco Os Bikud@s, fomentado pelo Instituto Cultural Steve Biko, uma entidade sem fins lucrativos fundada em 31 de julho de 1992, com a missão de promover a ascensão social da população negra através da educação e do resgate de seus valores ancestrais.





Pela primeira vez na história o Mudança entrou na programação oficial do carnaval baiano. O bloco entrou no Campo Grande com carroças puxadas por burros e muito protesto social. Haviam cartazes criticando o prefeito, defendo o aborto, o direito dos homossexuais e em defesa do ambiente. Durante o trajeto do Garcia até o Campo Grande, encontramos figuras ilustres da política soteropolitana, como a ex-prefeita Lidice da Mata e o presidente da Fundação Cultural Palmares, Zulu Araújo.

foto: Dalmo Oliveira

Mudança do Garcia: irreverência e prostesto




SOBRE O INTERCÂMBIO



Talvez a ALAI possa ampliar sua abordagem para a cobertura midiática étnica noutros estados brasileiros. Poderiam ser montados núcleos estaduais interessados em promover uma cobertura alternativa dos carnavais regionais. Isso não impediria a continuidade dos intercâmbios internacionais, principalmente com os países africanos lusófonos.




Faz-se urgente um projeto de captação de recursos para a logística do intercâmbio. Passagens, hospedagem e refeições (ou diárias) são indispensáveis para o progresso do programa.




Seria importante a otimização da publicação do material produzido pelos participantes do programa, em formato de revista ou livro, com coletânea de artigos. Imagino que algumas escolas de comunicação da região teriam interesse nesse tipo de parceria com a ALAI.









1Artigo-relatório para a ALAI, produzido pelo jornalista Dalmo Oliveira, a partir de cobertura especial durante o carnaval 2009.

Um comentário:

Val disse...

Dalmo, achei mto interessante essa observaççao científica q vc fez sobre o carnaval baiano. O multiculturalismo apresentado era até suspeito, lido nos jornais, mas agora que vc registrou de perto, é interessante saber q a Bahia tem dessas e de outras coisas tb, como os blocos tradicionais.
Msm assim, o baiano está 'descartando' mtas bandas de axé p outros Estados no NE. Ou seja, limpam sua festa das 'sobras axezeiras' e esses degetos sonoros, q ninguém aguenta mais, estão ainda reinando em cidades pequenas do RN e PB. O axé é uma praga, qto mais morre, mais nasce!
Bjs!