por Dalmo Oliveira1
Enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo nomandismo que se expande junto às redes de informação.
Ana Isabel Lopes e Sónia Santos2
1.Intro(missão)
A noção exata de “controle social” me ocorreu a pouco tempo, depois que assumi oficialmente a militância no movimento de pessoas com doença falciforme, através de duas organizações de que faço parte: a Associação Paraibana de Portadores de Anemias Hereditárias (ASPPAH) e a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária na Paraíba (ABRAÇO-PB). Antes disso eu havia tido uma militância light no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Paraíba, onde disputei o cargo máximo (e perdi) ano passado.
Desde meados dos anos 80, quando iniciei minha peregrinação ideológica pelo movimento anarquista, ainda na UFPB, desenvolvi uma postura cética, crítica e reticente à toda e qualquer forma de institucionalização da vida pública. Comecei a desconfiar das intenções das igrejas, dos partidos, dos sindicatos, dos grêmios, das escolas, dos tribunais, dos clubes, das sociedades secretas, das polícias, dos governos e da família.
Anarquista que se presa deve duvidar de tudo e de todos mesmo. E a dúvida é a melhor aliada daqueles que fazem jornalismo utópico, jornalismo cidadão, jornalismo de combate. Então sempre achei que, sendo jornalista, havia escolhido a ideologia mais apropriada para essa profissão: a ideologia libertária.
Bem, é em nome dessa “ideologia” que escrevo as linhas em tela. Começo fazendo uma advertência ao amigo leitor: apesar de apontar minhas dúvidas, a partir de reflexões empíricas, e minhas denúncias e reclamações, a partir dos fatos que montam nossa realidade, não tenho a pretensão de ser o corretor universal, isento, neutro ou coisas do gênero.
Tenho minhas preferências, meus vícios, meus próprios defeitos e, claro, minha própria ideologia. E é a partir delas e da complexidade que é minha visão de mundo que faço meus apontamentos. Vamos à reflexão então...
2. Conferências públicas como instrumentos de controle da sociedade atual
No Brasil, as conferências públicas, organizadas pelo governo federal datam de abril de 1941, quando, sob a égide do governo Getúlio Vargas, foram realizadas conjuntamente, no Rio de Janeiro, as 1ª Conferências de Educação e Saúde. De lá para cá muita água correu por debaixo das pontes.
Claro que as políticas públicas nessas duas grandes áreas sociais fizeram mudar substancialmente a realidade nas escolas e hospitais. O SUS e o FUNDEB estão aí para comprovar que é possível regular minimamente serviços públicos tão importantes na vida da maioria dos cidadãos brasileiros.
Não descartamos o esforço da sociedade em tentar impor suas demandas aos governantes plantonistas. Basta lembrar de onde vêm todos os impostos que sustentam as máquinas públicas nacionais. O que nos parece certo, no entanto, é que as conferências funcionam muito mais como apaziguadoras do ímpeto de revolta (e de revolução) das “massas populares”,do que como um dispositivo efetivo de controle social nesses serviços públicos.
Na concepção libertária de gestão social, as assembléias populares deliberativas cumpririam o papel daquilo que hoje é dado às conferências públicas de regulação de alguns setores do modelo capitalista. Nada com magnitudes para além das comunidades, com diversas assembléias ocorrendo para a gestão duma cidade como João Pessoa, por exemplo. Com a diversidade e complexidade de um país como o Brasil, deliberações normativas genéricas acabam nivelando por baixo (ou por cima) grande parte das demandas coletivizadas.
Mas vivemos no Brasil do século 21, em plena vigência do modelo estatal capitalista, onde os dirigentes eleitos de forma “democrática” se arvoram na árdua missão de gerenciar o capital e, ao mesmo tempo, tapiar a massa, garantindo que governam em nosso nome. É nessa realidade onde ocorrem nossas gloriosas conferências.
Elas funcionam na mesma lógica dos processos consultivos que definem, em alguns lugares, os chamados “orçamentos democráticos” ou “orçamentos participativos”, que o Partido dos Trabalhadores começou a exercitar na Prefeitura de Porto Alegre, no final dos anos 80.
É um processo simples e prático: o gestor convoca “representantes” da população para definir as prioridades do orçamento ou das diretrizes das chamadas “políticas públicas”. Na maioria dos casos, os representantes que participam disso são lideranças cooptadas ainda no processo eleitoral que botou o gestor na prefeitura, no governo do Estado ou da República.
De um modo geral, há um limite racionalizado de reivindicações e propostas. Ou seja: eles só vão discutir demandas previsíveis pelo Estado e pelo Capital. Não se pode definir nas conferências, por exemplo, que os medicamentos devam ser distribuídos gratuitamente, ou que é proibido o funcionamento de hospitais e escolas particulares, atividades capitalistas que afrontam em vários itens a própria Constituição do pais.
É por conta desse controle que os teóricos da Educação e de outras áreas das Ciências Sociais afirmam que vivemos numa “sociedade de controle”, sendo que quem detém a guia são os representantes das minorias empresariais (capitalistas) que ocupam parlamentos, tribunais e poderes executivos.
3.Controle social: isso existe?
Os indivíduos que dizem representar organizações não-governamentais e não-capitalistas (associações, sindicatos, cooperativas etc) que participam do jogo das conferências públicas e das assembléias dos orçamentos democráticos, chamados às vezes de “terceiro setor”, são hoje homens e mulheres que dizem estar exercendo o “controle social” nas instâncias da máquina estatal em que recebem permissão para “controlar”.
O que contestamos aqui é: há no Brasil de hoje controle social de fato? Se há, porque uns morrem nas filas dos hospitais e outros têm acesso às mais modernas tecnologias de saúde? Porque negros e índios não podem aprender nas escolas públicas a história de seus povos e a contribuição que deram e dão para a gloriosa nação brasileira? Porque as mulheres do povo não podem abortar nos hospitais públicos, enquanto as boyzinhas das famílias ricas continuam dispensando seus fetos indesejáveis nas clínicas privadas? Porque um jovem pobre pode esperar por um juiz hipócrita na carceragem tendo sido pego com meia dúzia de pedras de crack, enquanto que os jovens ricos entopem frivolamente narizes, veias e pulmões com as drogas que quiserem numa boate da orla? Ou nada disso tem a ver com “controle social”??
É preciso analisar ainda o nível de legitimidade que os agentes do “controle social” dispõem, quando se sabe que grande parte dessas agências são financiadas por interesses corporativos totalmente contrários ao real anseio de democratização da vida social.
Na Paraíba, especialmente, um fenômeno agrava o cenário das lideranças que conduzem a pauta do “controle social” em vários níveis: o monopólio e hegemonização das entidades por indivíduos e grupos que se perpetuam nos cargos representativos dos organismos sociais. Veja o caso do sindicato da minha categoria, por exemplo, cujas “lideranças” estão à frente da entidade há quase 20 anos, mantidos num sistema de reeleição ad infinitum, totalmente esclerosadas em relação aos anseios atuais da grande maioria dos associados.
No caso específico da CONFECOM, é preocupante que a condução das discussões e a própria organização do evento esteja a cargo de grupos político-partidários, organismos corporativistas e entidades com baixa representatividade popular e cidadã. O mais grave ainda é ver que esses grupos utilizam-se de todas as manobras possíveis para afastar das discussões pessoas e entidades legitimamente interessadas na discussão da democratização da comunicação social paraibana e brasileira.
Afastamento que ocorre já pela baixa divulgação pública sobre as finalidades da CONFECOM e que se consolida no momento de credenciamento para participação nos fóruns propositivos e deliberativos. Artifícios utilizados especialmente por aqueles que foram formados nas odes de organizações político-partidárias, autodenominadas “socialistas”, “comunistas” etc. Uma prática que começa nos grêmios estudantis, diretórios acadêmicos e se espalha pelos centros comunitários, sindicatos, associações de moradores e ONGs.
Vista como mais um campo de batalhas entre representantes sociais e representantes do capital, a CONFECOM, torna-se, na prática, o exemplo mais novo da disputa ideológica dentro do próprio campo popular, onde pensamentos antagônicos disputam espaço e poder.
O discurso maniqueísta de alguns desses “representantes” afirma que “nossos inimigos são os capitalistas do empresariado da comunicação”. E que, do ponto-de-vista da sociedade civil “todos devemos juntar forças”. Mas como unificar essa luta se dentro do nosso próprio campo as práticas do golpismo, da manipulação, da centralização, da desfaçatez, da injúria e da covardia continuam dando o tom?
Antes de partirmos para a batalha externa será preciso equacionar as divergências políticas, ideológicas e metodológicas intestinas da nossa própria organização (se assim poderemos chamar esse aglomerado amorfo e antropofágico). É chegada a hora de separar o joio do trigo, construindo na CONFECOM uma representação social mais orgânica e menos fisiológica, afastando do processo indivíduos e grupos vinculados aos interesses meramente político-partidários, comprometidos com os governos de plantão e até com o empresariado midiático.
A delegação paraibana à CONFECOM nacional precisa ser composta de representantes legítimos dos grupos sociais secularmente alijados dos meios de comunicação empresarial, como os indígenas, os quilombolas e a classe trabalhadora do campo e das cidades. Para evitar que os mesmos que representaram a Paraíba nas inúmeras outras conferências continuem ocupando o lugar de quem tem compromisso social de levar e trazer discussões sintonizadas com a real situação dos segmentos sociais excluídos do debate público na terra de Assis Chateaubriand.
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1. Jornalista, servidor público federal, coordenador da ABRAÇO-PB;
2. Da Sociedade Disciplinar à Sociedade de Controle. Disponível em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/index.htm. Data de acesso: 30/10/2009.
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