terça-feira, novembro 24, 2020

ANTIRRACISMO | Vidas negras se importam

 

Pintura de Modesto Brocos y Gómez retrata
 Casa de Farinha com mulheres escravizadas
Desde o assassinato do atleta negro George Perry Floyd Jr., ocorrido em Minneapolis no dia 25 de maio, a frase “Vidas negras importam!” se transformou numa espécie de palavra-de-ordem de movimentos antirracistas em vários lugares do planeta. BLM (na sigla em inglês) na verdade é um movimento ativista que organiza, desde 2013, protestos públicos para denunciar a morte de pessoas negras, especialmente aquelas que são vítimas de ação policial violenta e das desigualdades provocadas pelo racismo estrutural verificado no draconiano sistema de Justiça Criminal dos Estados Unidos.


A iniciativa estadunidense tem como fundadoras Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, resgistrando suas primeiras atividades fora dos EUA a partir de 2016.

Os últimos acontecimentos trágicos no Brasil, com o brutal e covarde assassinato de João Alberto Silveira no estacionamento de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, reascenderam a massificação do apelo VNI.

Mas o que queremos discutir aqui é mais uma problematização discursiva desse apelo do que a mobilização social mundial antirracista.

Vamos começar, então, procurando analisar quais são os reais motores sociais que dão importância (ou não) à vida humana na atual conjuntura planetária.

Na famosa Declaração Universal dos Direitos Humanos, que delineia os direitos humanos básicos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, a importância à vida só aparece no seu Artigo 3° : “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

Imagina-se, assim, que John Peters Humphrey, ao esboçar a Declaração, tinha claramente em seu pensamento que, para os seres humanos, não adiantaria nascer (ter vida) se essa condição não estivesse inevitavelmente vinculada à garantia de viver em liberdade e com condições igualitárias de dignidade e de direitos. “(...)Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Logo, percebemos que havia um consenso naquele período de que se não houver liberdade, dignidade e vontade de fraternidade, a vida não teria muita importância.

E é justamente isso que assistimos no momento: vidas negras sendo descartadas, especialmente nas Américas, especialmente nos países ocidentais, porque não conseguem ter liberdade, nem, muito menos, viver com o mínimo de garantia de dignidade.

Diásporas e holocaustos

Essa semana, o Brasil pode colocar novamente na pauta da agenda pública a questão do racismo contra a sua população afrodescendente. E a cada ano a gente vai se conscientizando ainda mais das dimensões assustadoras do que foi (e das consequências atuais) o tráfico humano de africanos e africanas para as Américas em quase quatro séculos de escravismo comercial. O capitalismo atual não seria o que é sem essa modalidade de negócio.

Só para termos uma ideia desse desastre humanitário absurdo, o holocausto do povo judeu na Europa vitimou (em poucos anos, durante a Segunda Guerra) algo em torno de 8 milhões de vidas. Aliás, o termo “gueto” tem origem no confinamento de pessoas de origem judia depois da invasão nazista à Polônia, onde foram estabelecidos lugares assim em Budapeste, na Cracóvia, em Lvov, em Vilnius, em Kovno e o famoso Gueto de Varsóvia.

O comércio de escravos no Atlântico (tráfico transatlântico de escravos), também chamado de “tráfico negreiro”, ocorreu entre os séculos XVI e XIX, teria atingido cerca de 12 milhões de mulheres e homens capturados em várias partes do continente africano. Apenas o Brasil teria adquirido mais de 5 milhões de pessoas escravizadas nesse período.

A dispensa de vidas negras africanas atiradas ao mar durante as travessias do transporte dos escravizados é um dos episódios mais bizarros da história moderna da humanidade.

Negro importante

Depois que a sanha escravista foi abolida, oficialmente, da face da Terra (e o nosso glorioso Brasil entra para a História oficial como o derradeiro país a abolir esse tipo de crime contra a Humanidade), vidas negras passaram a importar cada vez menos.

O genocídio da nossa gente, que continua até os dias atuais nos “guetos negros” do Brasil é uma espécie de efeito colateral tardio dos séculos de escravização dessa população em nosso território pátrio.

Então, aqui precisamos mudar um pouco a intencionalidade dessa afirmativa coletiva engajada que diz que nossas vidas importam.  É óbvio que importam! Mas importam para nós mesmos!!

Uma pessoa não-negra no Brasil, ou nos EUA, pode até se solidarizar com as vítimas da barbárie racista, mas ela não tem condições de alcançar uma empatia efetiva conosco, pelo simples fato de que jamais vai sentir o que sentimos.

Jamais, os não-negros vão saber da dor ancestral com que nascemos. Não basta sentir-se negro. Nossa africanidade não é opcional, não é uma “escolha de vida”, muito menos um “estilo de viver”.

A vida negra importa para o povo negro. Importa para as mães negras que perdem, historicamente, seus filhos precocemente. Importa para os pais negros que observam, impotentes, seus garotos e garotas recrutados/seduzidos para os submundos da criminalidade. Vidas negras se importam, consigo mesmas.

 

 

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